“Bate que eu gosto”




PERSONAGENS:

O AMIGO
FREDERICO
ÂNGELA
GARÇOM










CENÁRIO:
Mesas espalhadas na calçadas na frente do bar. O AMIGO de FREDERICO toma cerveja sozinho e tranqüilamente. Veste-se com um jeans básico.
O Amigo está fumando quando FREDERICO ENTRA. Ele senta-se imediatamente numa cadeira e coloca uma pasta de executivo noutra cadeira vazia.Frederico está de terno desalinhado, com a gravata frouxa.

Cena 1.

FREDERICO
Você já bateu em mulher?
(Frederico coloca a pasta em outra cadeira vazia a seu lado. O Amigo levanta o braço acenando para o Garçom).
O AMIGO
Garçom, mais uma bem gelada. Mais um copo também.
(Frederico aproxima-se mais do Amigo).
FREDERICO
Você já bateu em mulher?
(O garçom atende um freguês numa mesa distante.O Amigo torna a levantar o braço, ASSOVIA).

O AMIGO
Essa cerveja vem ou não vem. Traga também um cinzeiro e mais um copo.
GARÇOM
Já está saindo.
O AMIGO
Você viu que jogaço ontem. Este ano não tem para o Mengo, para o Bota, pra ninguém. Quatro a zero.
FREDERICO
Você já bateu em mulher, na sua mulher!
(O amigo acende um cigarro).
O AMIGO
Não. Nunca bati em mulher, porra! Que pergunta, poxa!
(O garçom ENTRA, serve a cerveja e coloca o cinzeiro na mesa).
GARÇOM
Mais alguma coisa?
(Frederico faz um sinal com a mão indicando que não. O Garçom SAI. Frederico treme ao segurar o copo e ao tomar de um trago só o copo de cerveja.O copo fica vazio. O Amigo serve-lhe outro copo).
FREDERICO
Me ajude, cara. Estou ficando maluco.
O AMIGO
Você não vai à missa todo domingo. Procure o padre. Eu não sou bom em conselhos.Tenho a vida torta com a mulherada. Você sabe. Não sou bom exemplo para nada.

FREDERICO
Padre? O que um padre pode saber de mulher?
O AMIGO
Nem te digo. Alguns sabem até demais. Outros se dedicam a crianças e adolescentes. Tarados e beatos. Que nojo! Mas mudando de coelho pra pato. Não sendo conversa de corno, coisa que eu sei que você não é, pois boto a mão no fogo pela Ângela, pode desembuchar, então.
FREDERICO
Pois é a Ângela. Estou com ela há dez anos e me convenci de que nunca a conheci de fato...
(Frederico procura cigarros nos bolsos).

FREDERICO
...Dá um dos seus. Os meus acabaram...
(O amigo dá a Frederico um cigarro e o acende).

FREDERICO
...Vivi todo esse tempo com uma estranha. Semana passada fomos à festa dos Castro. Você também estava lá, lembra.
O AMIGO
Festa chata pra burro. Nunca vi tanto velho junto. Parecia baile da terceira idade. Os fisioterapeutas devem ter ganhado uma nota no dia seguinte. Tinha um lá que não agüentava nem com ele mesmo e foi dançar. Não tenho nada contra velho, mas uns tem que saber a hora de pendurar as chuteiras. Patético. Mas o Uísque era bom. Nem deu dor de cabeça.
(O Amigo levanta a garrafa vazia e ASSOVIA para o Garçom).
FREDERICO
Saímos da festa ainda cedo.
O AMIGO
Eu também saí cedo. Uma velhinha, que por sinal acompanhava o velhinho dançarino, vestida de mocinha, começou a dar mole pra mim. Ela devia ter a idade da minha avó. Imagina como ficou a minha auto-estima. Não suporto mulher assanhada, ainda mais com a cara da minha vó.
FREDERICO
Ângela é que insistiu para que saíssemos cedo. Bebi o de sempre, nada além da conta. Mas Ângela exagerou. Foi a primeira vez em que a vi bêbada. Começou a falar mole. Não tem nada mais irritante do que uma mulher bêbada.
O AMIGO
Mulher bêbada e velha assanhada. Onde vamos chegar?
FREDERICO
No carro, minha mulher estava irreconhecível. Queria porque queria ir a um motel.
O AMIGO
E você achou ruim. Está certo que ir com a própria mulher para o motel não tem muita graça. Algo assim como beijar a irmã, mas isso quebra a monotonia. Isso quebra. Ah, se quebra.
(O Amigo dá um tapinha nas costas de Frederico).

O AMIGO
Grande Frederico, garanto que o desempenho foi nota dez.

FREDERICO
Não brinque. É sério. Ela queria porque queria. Tive que levá-la. Você me conhece. Nunca fui num lugar desses. Ela preparou tudo. Endereço do lugar – acho que ligou antes até - uma sacola com suas coisas. Tudo.Deus me livre, mas tenho quase certeza de que se eu não fosse, ela sairia com qualquer um que quisesse ir a um motel. Dá mais um cigarro...
(Frederico traga a fumaça do cigarro, a solta e fica por um tempo a observá-la).

FREDERICO
...Confesso que até hoje não entendi nada daquilo. Do que Ângela realmente queria. Sei que todo mundo me acha pão duro. Mentira, quando o assunto é minha família sou mão aberta pra cachorro. Mas, para mim, transar em casa ou em qualquer outro lugar dá na mesma. E em casa não é só mais barato, é cômodo, prático mesmo; e depois, é só virar de lado e dormir.


O AMIGO
Não precisa levantar pegar o carro, enfrentar o caminho com sono. O governo deveria fazer uma campanha de trânsito assim do tipo “transe em casa” e evite acidentes.

FREDERICO
Vou lhe contar tudo em detalhes, para que você entenda meu desespero. Foi assim:




CENÁRIO:
A decoração, embora almejando certo luxo, abusa de cores fortes. A cama está logo na entrada, perto um bar com garrafas de bebidas e taças.

CENA 2.
(ÂNGELA ENTRA arrastando FREDERICO pelas mãos. Ela está com um vestido dourado de festa e carrega uma bolsa e a sacola. Frederico está com um terno escuro.A porta fica aberta. Ela abraça Frederico).
ÂNGELA
Frederico, você ainda me ama?
FREDERICO
Ângela, o que deu em você criatura?
ÂNGELA
Sabe quanto tempo faz que a gente não transa?
FREDERICO
Esses dias a gente transou.
ÂNGELA
Ângela, faz dois meses já.
FREDERICO
Não faz tanto tempo assim.
ÂNGELA
Faz sim.
FREDERICO
Mas semana passada, não lembra?
ÂNGELA
Aquilo não conta, você quase dormiu em cima de mim. Não tirou nem o pijama...
(Ângela puxa para baixo a parte superior do vestido, os peitos ficam nus. Pega nas mãos de Frederico e as puxa para os seus peitos).

ÂNGELA
...Pega. Veja, sou mulher. A sua mulher. Esqueceu?
(Frederico empurra Ângela).
FREDERICO
Você está bêbada.
(Ângela começa a chorar e a gritar. E pega uma TAÇA DO BAR e a quebra jogando-a contra a parede).
ÂNGELA
Bêbada? Eu estou puta. Puta com esta vidinha besta que você me obriga a levar. Preciso de prazer. Lembra o que é prazer?
(Ângela soluça e chora.Frederico lhe dá um tapa no rosto. Ela se apóia na cama, não chega a cair e retoma o equilíbrio. Ela agarra Frederico pelo colarinho e o sacode).
ÂNGELA
Isso Frederico, bata mais...
(Frederico fica imóvel ainda seguro pelo colarinho).

ÂNGELA
...Bata mais, seu cachorro.
(Frederico, ainda indeciso, levanta a mão para bater em Ângela.Ele acerta o rosto de Ângela que cai no chão. Ângela rindo estirada no chão).
ÂNGELA
Me bata seu cachorrão. Me bata mais.
(Ângela levanta-se).
CENAS EM SEQÜÊNCIA:
A)Frederico dá mais um tapa em Ângela.
B)Ela cambaleia.
C)Ele rasga o restante do vestido.
D)Ele dá tapas que pegam em várias partes do corpo de Ângela
E)Tapas na bunda de Ângela
F)Frederico abaixa suas calças até os joelhos.
G)Eles transam no chão do quarto.



CENÁRIO:
O mesmo cenário da Cena 1.
Cena 3.
FREDERICO
Fizemos amor ali mesmo no chão do quarto. E pela primeira vez, em dez anos, Ângela não pediu para apagar a luz.
(O Amigo gargalha).
O AMIGO
Porra, cara, é só isso. Você devia estar contente. Está preocupado à toa. Aliás, não vejo razão nenhuma para você estar assim, desse jeito. Fantasia de mulher. Tudo vai ficar bem.
FREDERICO
Bem nada. Foi nesse dia que começou a minha desgraça.
O AMIGO
Que desgraça, rapaz?
FREDERICO
Desculpe, mas me dá mais um cigarro. Os meus acabaram e aqui não tem para vender.
(O amigo dá a carteira de cigarros para Frederico).
O AMIGO
Toma, fume quanto quiser, tenho mais um maço no carro.
(Frederico acende o cigarro).



FREDERICO
Obrigado. Desde aquela noite no motel, depois da surra, a minha mulher anda radiante. Comprou roupas novas, Está fazendo regime para emagrecer. Pega filme pornográfico na locadora para assistir e mandou as crianças para passarem as férias na casa da avó.
O AMIGO
E você não está gostando?
FREDERICO
Como posso gostar? Você sabe da minha educação. Fui educado na sacristia, sou um homem direito. Um homem honesto e de fé. Ângela está em pecado ao agir desta maneira. Sexo para nós, pelo menos para mim, sempre foi pecado. Ângela também foi educada assim. Era linda, nunca tinha sido tocada, casou virgem, tenho certeza. Não sei o que loucura deu nela. E o pior você ainda não sabe...
(Frederico toma um longo gole de cerveja e limpa a boca com o punho da camisa).

FREDERICO
...Não consigo mais dormir com minha mulher. Peguei um certo receio dela depois daquela noite. Estou dormindo na sala.
O AMIGO
Que bobagem.




FREDERICO
Sem querer ofender meu amigo, pode ser bobagem para você que está acostumado com essas mulheres mais saidinhas. Não lhe culpo, você é divorciado, pode se dar a esses luxos. Mas Ângela é mãe dos meus filhos. Olha, já tentei o diabo para esquecer de tudo e me aproximar dela novamente, mas não consigo. Aquela não é Ângela, é uma vagabunda qualquer. É o demônio.



CENÁRIO:
Escritório de engenharia com uma mesa antiga com um moderno computador sobre ela, ao lado uma CAIXA DE LENÇOS DE PAPEL e TELEFONE. CADEIRAS. Prancheta de desenho e maquetes de prédios sobre outra mesa. O Amigo está de camisa branca e gravata solta no colarinho.
CENA 4.
(O TELEFONE TOCA. O Amigo atende).
O AMIGO
Oi, diga Nanci...Quem?...Dona Ângela...Mande entrar.
(O Amigo ajeita a gravata e arruma o cabelo.
Ângela ENTRA. Ela é loira e veste uma saia muito curta. O amigo levanta-se e vai recebê-la na porta).
O AMIGO
Ângela, que surpresa. Vai querer construir uma nova casa? Para você e Frederico faço o projeto de graça.
ÂNGELA
Infelizmente, não?

(Ângela começa a chorar.O amigo arruma uma cadeira em frente a sua mesa. Ângela senta-se.Ela cruza as pernas).
O AMIGO
O que aconteceu?
Ângela aumenta a intensidade do choro. O Amigo empresta o lenço para Ângela e olha para as pernas cruzadas dela.

ÂNGELA
O Frederico sumiu.
(Ângela descruza as pernas e apanha mais um lenço de papel sobre a mesa sem deixar a cadeira. No movimento a calcinha aparece sob a saia. O Amigo observa, pede licença e caminha para um canto do palco).

O AMIGO (Só.)
Frederico tinha razão. Isso é uma tentação do demônio. Que pernas, que pernão. Não deixa disso. O Frederico é gente boa, tem filhos, não vá fazer besteiras... Seu safado.
(O amigo volta para a sua mesa).
ÂNGELA
Há uma semana, na sexta-feira, ele chegou em casa muito nervoso, pegou uns trocados que eu guardo numa caixinha e disse que estava saindo para comprar cigarros.
O AMIGO
Na sexta-feira passada?
(Ângela soluça).
ÂNGELA
Sim e é por isso que estou aqui. Disseram-me que vocês estavam juntos no bar tomando cerveja.
O AMIGO
Horário de Verão. Sabe como é, dia quente, temos que aproveitar.
ÂNGELA
Vocês estavam juntos?
O AMIGO
Sim, tomamos algumas cervejas.
ÂNGELA
E você não sabe para onde o meu marido foi.



O AMIGO
Não. Ele tomou cerveja, conversamos um pouco e eu pensei que ele fosse depois para casa.
(Ângela torna a chorar).



CENÁRIO:
O mesmo da Cena 1.
CENA 5.

(O Amigo está tomando uma cerveja e fumando sozinho na mesma mesa. Ele está de bermudas, sandálias e camiseta).

O AMIGO (Só.)
Hoje está fazendo um ano que Frederico sumiu. Procuramos por ele até em necrotérios e asilos para alienados. O cara tomou chá de sumiço mesmo. Vai ver está fora do país, ou morreu como indigente. Quem sabe?
(Ângela ENTRA com uma saia curta e blusa decotada. Usa óculos escuros e está com uma sacola de compras. Ela beija e abraça o Amigo e senta-se ao seu lado).
ÂNGELA
Eu achei umas algemas e um chicotinho no sex shop. Veja que lindinho...

(Ângela tira os objetos da sacola).

ÂNGELA
...E o baby-doll que forma um conjuntinho lindo com o sutiã e a calcinha. Tudo rendado. Tem uma máscara também, você nem vai acreditar.


FIM





Copyright © 2005 by José Fernando Nandé - jsfernando@hotmail.com

Cachorra!





As folhas abandonadas na calçada mostravam a nova estação, tão seca e desprovida de atrativos quanto um pão amanhecido e esquecido no fundo de um armário. Os amigos foram chegando aos poucos no bar. Nunca marcavam encontros. Desde sempre os encontros já estavam marcados: no final da tarde, até que resolvessem ir embora. Naquele dia, dia qualquer, dia de folhas mortas, o primeiro que apareceu foi Kaléu, bêbado inveterado, artista plástico quando sóbrio, metido a valente e por isso contado na amizade de poucas pessoas. Chegou, sentou-se à mesa de sempre, pediu um conhaque e ficou olhando para uma morena bonita e um tanto passada. Ela não parava de retocar o batom escandalosamente vermelho e que fugia pelo menos meio centímetro além dos lábios. Explicável, a mulherona os tinha finos. Coisa esquisita: um bundão, peitões, cabelos longos, olhos grandes e duas linhazinhas paralelas fazendo as vezes de beiços. Ela devia beijar mal, porém Kaléu julgava-se no tempo do pós-beijos, do pós-carinhos — na realidade, ele sentia-se na idade do canalha assumido: do cara que deseja o prazer máximo e sempre com o mínimo esforço.
Sem outra distração, Kaléu aceitou o jogo de troca de olhares com a morena. Entretanto, nada, ou quase nada, trazia para aquela cena entusiasmo ou esperanças. No seu pensamento raso, sem dar a mínima por ser chamado de machista, à medida que o homem ganha experiência, a coisa funciona como em pescaria num córrego que está a secar: peixes pequenos e escassos. Carece, portanto, não perder muito tempo: a vítima não beliscou a isca, o pescador inteligente muda a vara de lugar.
Pedrinho Mc Laren chegou em seguida. Publicitário um pouco além do medíocre, vivia chapado e contrariando qualquer lógica, no nome ganhou o complemento de “Mc Laren” por pura sacanagem. Falava devagar, andava devagar, demorava horas para tomar sua cerveja sempre acompanhada de alguma bebida destilada e amarga.
“Tem visto o Cláudio?”, perguntou Mc Laren assim que puxou uma cadeira até a mesa de Kaléu.
“Semana passada ele esteve aqui”, recordou Kaléu, já esquecido dos olhares da morena sem lábios.
“Ah é, que cabeça a minha! Como não lembrar do escândalo que ele fez ao não querer pagar a conta.”
“E por causa disso a garçonete está uma arara conosco. Faz tempo que cheguei e ela ainda não trouxe meu conhaque.”
Pedrinho Mc Laren ficou um tempão com o olhar perdido, viajando muito além da mesa da morena e seu batom que, certamente, nem notou. Depois de algum tempo retomou a sintonia com o mundo terreno:
“Vamos dar uma gorjeta gorda para ela e tudo fica bem. O Cláudio fez aquela cena toda porque havia consolidado o divórcio. Não é fácil, casado há de trinta anos, com filhos, passaria a primeira noite sozinho em casa.”
“É, a primeira noite sozinho é barra”, observou Kaléu.
“Você tem experiência. Foram quantas? Cinco noites inaugurais de solidão?”, provocou Mc Laren.
“Eu me separei só quatro vezes!”
“Desculpe-me, cinco é um exagero de minha parte. Um sujeito que se casa mais de uma vez prova ser estúpido pelo menos duas vezes.”
“Está me chamando de estúpido!?”
“É lógico que não, calma, não se exalte!”
“Mais do que estúpido, então!”, disse Kaléu, tentando agarrar o colarinho do amigo.
“Não, nada disso. Não estou falando de artistas, falo de outro tipo de homem.”
“Está certo, quero crer que você não está me gozando!”
“De jeito maneira, Kaléu. Quem casa mais de uma vez é estúpido porque realmente acredita nesta instituição falida chamada casamento, coisa da Idade Média. Não é o seu caso, eu sei, você tem um gênio difícil; você ainda procura a pessoa certa, sabendo que nunca vai encontrá-la. Casamento para você é uma tentativa de se tornar como todo mundo, é o seu desejo de uma vida certinha. Infelizmente inatingível para artistas. Você, no fundo não acredita no casamento, por isso nunca teve filhos. Mas o que eu queria dizer mesmo, é que tem certos sujeitos que se fazem os crentes dos crentes. São duas ou mais vezes estúpidos, porque vão ter ex-mulheres e agregados, do tipo cachorro, filhos, papagaio e sogra, a encher-lhes o saco. Isso sem contar as pensões. As ameaças de prisão... Um inferno na terra.”
“Ei, olha lá, não é o Cláudio?”, perguntou Mc Laren, apontando para um sujeito que se aproximava dançando.
“Aí, rapaziada, estou curtindo a liberdade!”, disse Cláudio chegando-se à mesa dos amigos.
“Ainda bem que você está legal! Estávamos preocupados. Você sumiu”, observou Mc Laren.
“Sumi nada. Estava aplicando toda minha experiência para ganhar um anjo!”
“Não me diga que você pensa em passar desta para melhor. Anjo é coisa lá do outro lado, do mundo do invisível!”, disse aos risos Kaléu.
“Que nada, estou decidido. Só vou namorar ninfeta de hoje para diante."
"Capim novo para cavalo velho, não tem nada melhor! Depois de velho virou safado!”, alfinetou Mc Laren.
“Não me ofenda. Tenho minhas economias, meus filhos estão encaminhados. Não vou gastar tempo e dinheiro com carne de segunda. Ah, isso não!”
“Não deixa de ser uma boa teoria... A teoria do açougue, bom nome!”, emendou Kaléu. “Mas vamos examinar o assunto com rigor científico.”
“Rigor científico? Que merda é essa, está querendo me tirar do sério?", vociferou Cláudio.
“Antes de teorizar o assunto, quero um compromisso de nós três. Chova ou faça sol, nos encontraremos neste mesmo local daqui a três anos.”, sugeriu Kaléu.
“Fechado!”, disse Mc Laren.
“Fechado!”, emendou Cláudio.
“Com quantos anos você está agora?”, perguntou Kaléu a Cláudio.
“Estou com cinqüenta e oito e em forma!”
“Com quantos anos está o anjinho que você anda azarando?”
“Ela tem vinte e um, uma belezinha!”
“Daqui a três anos você vai estar com sessenta e um e ela com vinte e quatro, certo?”
“Certo, e daí?”
“E daí que se você ficar com ela todo esse tempo, das duas uma: ou ela lhe mata de cansaço ou você será apenas mais um corno, velho e assanhado.”
“Porra, cara! Vocês vão para a puta que os pariu!! Volto daqui a três anos e provo para vocês que isso tudo não passa de inveja. E agora dá licença, que esta conversa já deu no saco. Tem gente que não suporta a felicidade alheia mesmo. Vão à merda!!!”
“É isso, vamos todos à merda!”, disse Mc Laren.
“Daqui a três anos, todos aqui!, lembrou Kaléu, antes que os amigos tomassem rumo chutando as pedras da calçada.
II
Três anos depois (menos um dia):
Nem parecia outono. Frio mesmo. Cláudio estava sentado no quarto numa poltrona em frente à TV e com suas pernas enroladas num cobertor. Sua mulher estava no banheiro.
“Benzinho, traga-me o meu chá!”, pediu Cláudio, brigando com o controle-remoto da TV.
“Já vai, só vou terminar de ajeitar o cabelo”, gritou a mulher.
Cláudio desligou a TV e apanhou o jornal. Suas mãos tremiam. Colocou os óculos. Jogou o jornal de lado e voltou a apanhar o controle-remoto.
“Está aqui seu chazinho, sem açúcar, como você gosta!”, disse a mulher, que vestia um sumário vestido preto e exagerava na maquiagem.
“Amanhã, querida, eu tenho um encontro com uns amigos no bar, gostaria que você fosse comigo.”
“Não posso querido, eu marquei com mamãe. Vamos visitar meus avós na praia.”
“Mas não dá para adiar?”, sugeriu Cláudio.
“Não, não dá. Vovó está doente e amanhã é o aniversário dela.”
“Mas este encontro é tão importante para mim...”
“Sinto muito, fica para outra vez. Mamãe já deve estar chegando. Ela ficou de me apanhar.”
“Mas o aniversário de sua avó não é amanhã?”
“É amanhã, mas a gente tem que sair hoje, fica longe, no Litoral de Santa Catarina, em Celso Ramos, Praia dos Ganchos... Lembra? Já fomos lá”.
“Sim, mas é perigoso viajar de noite”, observou Cláudio, sabendo-se impotente em todos os sentidos para conter os desejos da sua novíssima esposa.
Ela tornou ao banheiro enquanto cantarolava um sambinha numa alegria sincera. Cláudio continuou sua luta contra o controle-remoto:
“Que merda de TV, não sei a razão de pagarmos TV a cabo, os filmes se repetem, acho que já assisti todos!”, disse Cláudio, esperando resposta que não veio.
Depois de alguns minutos a jovem esposa retorna ao quarto, exalando o cheiro de perfume muito forte e doce. Deslumbrante, com sua juventude traduzida em carnes querendo saltar fora do vestido.
“Você vai passar frio”, disse o marido.
“Estou com uma meia-calça grossa”, respondeu a esposa, apanhando seu casaco e se inclinando para Cláudio na intenção de dar-lhe um beijo de despedida, mas que na realidade objetivava a carteira no bolso do marido.
“Vou precisar de dinheiro para o presente de minha noninha!”
“Mas, mas...”
“Uma beijoca, não vá dormir tarde, tome seus remédios e não esqueça de dar água para o periquito. Comporte-se queridinho! Darei lembranças tuas para todos!", disse a ninfeta, guardando umas notas na bolsa, antes de abrir a porta e desaparecer deixando atrás de si seu doce perfume.
Ao ver a porta fechada, Cláudio se segura na bengala e arremessa o controle-remoto contra a parede:
Caachooorraaaa!!!
III
Exatos três anos depois:
O outono realmente estava atrasado. Nenhuma árvore parecia estavar descabelada. Entardecia. O verde, embora mais escuro, se fazia ainda por toda parte. Kaléu foi o primeiro a chegar no bar. Pediu o de sempre, o velho conhaque. Era sábado, como qualquer outro sábado, pois para Kaléu, de há muito o dia, qualquer dia, passou a ser apenas isso, a parte das 24 horas em que se tem a luz do sol. Depois de uma hora Pedrinho Mc Laren apareceu acompanhado de uma mulher realmente bonita.
“Oi, Kaléu, esta aqui é a Miriam!”
“Encantado!”, respondeu Kaléu, segurando a mão branquíssima e suada da moça, sem esconder a surpresa com o bom gosto de seu amigo.
Mc Laren podia ser devagar em tudo, menos com as mulheres. E aquela realmente tinha os atributos que um homem pode querer. Linda, simpática, madura, de pele macia e cheirosa. Mas Kaléu era um cara de respeitar amizades. Logo, desviou o olhar da moça e passou a conversar com Mc Laren:
“Será que nosso amigo aparece?”
“Acho que sim. Embora não dê as caras por aqui há três anos... Ele mandou recado lá para o escritório dizendo que viria”, informou Mc Laren.
“Moça”, disse Kaléu, chamando a garçonete, “por favor uma cerveja e mais dois copos”.
“Uma vodka também”, emendou Mc Laren.
“Meu amor, vamos demorar muito? Temos pouco tempo, tenho que voltar para casa”, disse Miriam a Mc Laren, cobrando-lhe beijos.
“Não, espere um pouco. Só vamos resolver este assunto. É uma espécie de aposta. Só estamos esperando um amigo.”
“Olha, ele está chegando!”, disse Kaléu.
Cláudio aproximou-se lentamente da mesa apoiado em sua bengala. Estava branco. Muito branco. Parou do lado de seus amigos, recusou a cadeira que lhe ofereceram. Ergueu a bengala e urrou:
Caachoooraaaaa!!!
Depois, a bengala caiu de sua mão, lenta, lenta, fazendo um rodopio antes do baque no solo, como se lembrasse a todos que ali estava apenas um pedaço de madeira seca.
Cláudio segurava o peito como se sentisse uma punhalada. Tentava respirar. Bambeou as pernas, dobrou os joelhos e juntou o seu velho rosto ao chão.
O bar silenciou e antes que o mundo voltasse a sua rotação normal, foi possível ver a primeira folha seca do outono roçar o pavor nos olhos arregalados do cadáver.

Gorki e seus adoráveis vagabundos




São terríveis certas palavras e expressões. Alma e espírito, por exemplo. Dizem muito, entretanto sem se explicarem. Por desgraça, estes espectros da realidade habitam outros mundos, etéreos por certo, dos quais só temos vagas e imprecisas notícias. Em literatura, essas duas palavras teimam em existir, mesmo que o autor nunca delas faça uso. Em Alexei Pechkov, nosso “amargo” Gorki (foto), encontramos vários espíritos que habitam sua obra. Na maior parte, espíritos de revolta contra a condição humana, porém de profundo respeito ao que nos faz humanos.
No Brasil, temos dois notáveis textos sobre este escritor russo, um de Carpeaux e outro de Cony, que buscam desvendar o espírito — ou espíritos — de Gorki que, aliás, ele mesmo esboçara em “As minhas universidades” por meio da fala da personagem Nicolau, um químico com ares de filósofo.
O espírito de Gorki fundamenta-se na liberdade: “Não esqueças o que já sentes dentro de ti: a liberdade de pensamento é a única, e bem preciosa, liberdade acessível ao homem. E só a possui aquele que, nada aceitando por dogma, explora tudo, aquele que compreendeu bem a continuidade da evolução, o seu movimento infatigável, a perpétua mutação dos fenômenos ”, ensinou-lhe Nicolau.
Otto Maria Carpeaux ocupou-se em situar Alexei Pechkov na linha do tempo. Para Carpeaux, ele simplesmente descobre um mundo novo na literatura russa. Gorki nascera pobre e ficara órfão aos nove anos. Em decorrência, foi aprendiz de sapateiro, pintor de ícones, faxineiro, cozinheiro de navio e padeiro, enquanto aprendia as letras por conta e tornava-se escritor. Tudo isso intercalado por andanças intermináveis pela Rússia czarista. Mas tendo uma vida assim, digamos, para lá de miserável e incerta, o que Gorki descobriu? Ele descobriu um povo não menos miserável do que ele e que poderia habitar como protagonista as páginas de seus livros. Ele descobriu a alma do povo que aparecera até então nas obras literárias como apêndice de dramas, geralmente pessoais, de uma nobreza moribunda e de uma burguesia emergente e entediada. Carpeaux observa que nos escritos de Gorki não há lugar para os aristocratas e latifundiários, muitas vezes com sentimentos de culpa, como em Tolstoi e nas peças de Tchekov. Não há espaço também para burocratas, tiranos e corruptos como em Gogol; ou ainda para os camponeses (“muchicks”) idealizados, quando não santificados, pelos escritores russos. A obra de Gorki trata fundamentalmente dos vagabundos e desempregados, desajustados que vagavam pelas cidades e estepes da Rússia. Mas o genial é que Gorki traz à luz não somente este “lumpemproletariat” que buscava na vagabundagem uma opção de vida, talvez a única naquela Rússia pré-industrial. Ele traz também um tipo diferente que não costumava freqüentar as salas de tipografia em que os livros eram compostos. A genialidade de Gorki está em mesclar os personagens do lumpemzinato aos desertores da vida — pelo menos da vida como pensamos que é, com regras, códigos, licenças para respirar e cuspir.
Em o “Vagabundo Original”, somos apresentados ao Dr. A. P. Ruminski, médico que morreu entre os mendigos. Um homem que, sem ficar demente, simplesmente resolveu viver os últimos anos de sua vida segundo sua própria filosofia. Ruminski agrada a Gorki porque, no fundo, ambos compartilham praticamente do mesmo pensamento. Para o médico, a felicidade está em o homem ter-se inventado bem a si mesmo e amar a sua invenção. “Amar-se a si próprio pode fazê-lo um porco, um cão, qualquer animal. Faz-se por instinto! O homem, contudo, apenas deve amar aquilo que ele mesmo criou para si.” E Gorki pergunta-lhe: “E o senhor o que ama?”.
“O meu amanhã (...) Tenho a ventura de não conhecer o que ele será”, respondeu-lhe o doutor, que se guiava por uma moral fatalista. “Eu sou um condenado à morte, tenho o direito de viver ao meu modo. Não preciso para nada das leis humanas, visto que igualmente para mim a lei natural da geral destruição é obrigatória.”
Por outro lado, a análise de Carlos Heitor Cony tenta captar o espírito político de Gorki, que viveu no período mais intenso das transformações sociais, culturais e econômicas da Rússia. Alexei Maximovitch Pechkov nasceu em 1862 em Nijini-Novgorod. Aos 36 anos ele aparece para a literatura em definitivo e ganha o coração do povo russo, em todas as classes sociais. Vivendo na época violenta e tirânica dos czares, atravessando alguns movimentos revolucionários fracassados, como o de 1905, ele abraçou o socialismo, sendo preso e condenado à morte. Foi salvo por um grande movimento internacional de intelectuais.
Taxado equivocadamente de “pai da literatura proletária”, Gorki é julgado pela Academia Comunista, organismo máximo do pensamento soviético, em 1927. A tola questão: ele era ou não um “escritor-proletário”? A Academia decidiu que não, mas por sorte, Stalin ignorou esta picuinha acadêmica, talvez simplesmente por gostar do que escrevia Gorki, ou por saber das antigas divergências entre o escritor e Lenin.
De acordo com Cony, Lênin e Gorki foram socialistas, à maneira deles. “Em Gorki, o socialismo não passa a sua fase primitiva: amor aos homens, confiança no homem — aquele cristianismo eslavo que talvez mereça o nome de russismo. Gorki não aceitava, sobretudo, o problema da consciência, tal como Lênin o expunha. Para Lênin, a consciência era um produto do ser social, ao passo que Gorki acreditava que o ser social era um produto da consciência. Lênin era um erudito, homem disciplinado intelectualmente, amante feroz da lógica e da razão. Gorki, o autodidata contraditório e sentimental.”
E é justamente neste ponto que encontramos o verdadeiro espírito gorkiano: humanista por excelência e, sobretudo, sentimental. Suas personagens, mesmo as comprometidas com as lutas sociais, como as encontradas na peça “Pequenos Burgueses”, aparecem duras num realismo sem precedentes, todavia com seus corações envoltos pela mais pura ternura.
Em “As minhas universidades”, que não vou classificar como biografia de Gorki, pois me parece que quase tudo que ele escreveu está nesta categoria, encontramos belas descrições feitas a partir de uma visão deliciosamente humana: “Os Evreinov, mãe e dois filhos, viviam de uma pensão miserável. Logo nos primeiros dias observei a tristeza trágica com que a pobre viúva, de estatura pequena e apagada, estendia sobre a mesa da cozinha as compras insignificantes que fizera no mercado, procurando solucionar este difícil problema: como tirar de tão insignificantes pedaços de carne de terceira, quantidade suficiente de boa alimentação para três rapazes saudáveis, sem já contar com ela mesma. Taciturna, os seus olhos cinzentos refletiam a teimosia doce e resignada do cavalo esgotado pelo trabalho excessivo: o pobre animal arrasta a carroça na ladeira; sabe que não chegará ao fim, mas continua”. Notem, que nesta descrição, dentre tantas outras presentes na obra de Gorki, não há nada de panfletário, de comunista, nem mesmo uma única linha na tentativa de explicar as causas da miséria dos Evreinov. Gorki apenas constata o sofrimento e usa para tal aquilo que o transformou num dos maiores escritores do século XX, o olhar do coração em conflito com a realidade.
O lado sentimental do autor de a “A Mãe” aparece mais nitidamente associado às mulheres. Bachkine, outro personagem de “As minhas universidades”, ladrão profissional, ex-aluno da escola normal, tuberculoso, “mais de uma vez impiedosamente espancado”, aconselhava Gorki: “Pela mulher, faria fosse o que fosse. Para ela, como para o demônio, o pecado não existe. Viver a amar, ainda nada se inventou de melhor.”
De certa maneira, o conselho do ladrão profissional calou fundo na alma do escritor. Quase no final de suas memórias, ele dedica um capítulo especial para o seu “Primeiro Amor” e num momento de reflexão emenda: “Quando não se sabe, inventa-se, e o que o homem inventou de mais sensato, foi amar a mulher e adorar a sua beleza; é deste amor que nasce tudo quanto é mais belo no mundo”.
Certamente celibatário, ao 23 anos Gorki conta ter conhecido Olga, dez anos mais velha, casada e que tinha uma filha, fruto de outro relacionamento. No início, ele alimenta-se de um amor platônico. Depois, patético, como todo amante deve ser, se declara em poemas e bucólicos passeios pelo lago. Neste episódio, Gorki não fica devendo nada aos escritores românticos: crises existenciais, medo da rejeição, o conflito moral de sabê-la casada etc. Porém, mesmo neste aparente e necessário pieguismo literário, o escritor não deixa seu velho estilo realista. É como se seu coração fosse ritmado por um batuque de alegria e esperança e a vida por ruídos de espanto e horror.
Olga é instruída, bonita e inteligente, um verdadeiro imã para que hoje chamamos cantadas, entretanto pobre. Vive como a maioria do povo russo, em dificuldades. O marido é preguiçoso e indolente. Sujeito que não se envergonha de ver a mulher se matar de trabalhar, às vezes como criada e cozinheira, às vezes como desenhista de retratos.
Gorki não pestanejou em convidá-la para viverem juntos. Ela faz suspense, não diz sim, nem não. Ele parte para outra cidade e ela fica. Depois de três anos há o reencontro. Desta vez Olga se decide e vai viver com o jovem escritor.
Os três, pois a filha de Olga também os acompanha, passam a morar numa casa úmida, fria e ruim. Pelo que parece, pois não temos a medida do tempo neste capítulo de Gorki, por um longo período eles fazem as refeições na casa do diabo, com o pão amassado pelo próprio, é claro. E o que enternece o escritor é que neste tempo todo, Olga não reclamou uma única vez da triste situação.
Não brigavam, mas discordavam no modo de encarar a vida. “Filosofas demais”, dizia a mulher ao novo marido. “A vida, no fundo, é simples e brutal; não devemos complicá-la, procurando nela um sentido extraordinário; o que devemos é aprender a suavizar-lhe a brutalidade. Mais do que isso, não conseguirás nunca. (...) O amor e a fome governam o mundo, e a filosofia faz sua desgraça. Vive-se para o amor, é o que há de mais importante na vida”, dizia Olga.
Num dia qualquer, o escritor descobriu o que quase todos descobrem e que só ousamos contar com todas as letras no século XX: o amor é chama. Somente o compartilhar diário do travesseiro para se conhecer a natureza dos elementos que extinguem este fogo.
Felizmente ou não, a sociedade industrial desobrigou os homens e as mulheres dos compromissos eternos. Atores coadjuvantes desse tempo bárbaro — movido pela máquina e pelo pragmatismo até mesmo no amor —, dois fatos foram suficientes para que eles se separassem. O primeiro, o mais terrível: Olga dormira enquanto Gorki lia um de seus manuscritos ao pé do seu ouvido. O segundo, e a gota d’água: foi quando o escritor chegou em casa transtornado depois de ter presenciado um policial espancar covardemente um judeu no mercado. “Quando lhe falei no judeu espancado, mostrou-se muito surpreendida: — E é isso que te deixa maluco? Que nervos tão frágeis os teus!”.
Gorki teve outras mulheres e parece ter amado de verdade somente a primeira. Ele morreu em 1936, suspeita-se que vitima de envenenamento. Talvez ele tenha morrido mesmo do mais sutil dos envenenamentos, aquele provocado pela absorção lenta da realidade e deste supremo escândalo que é viver sem se saber explicar. Mas aí já entramos em Camus, e isto é um outro papo!

A gostosona do colegial


Alguém disse que a vingança é um prato que se come frio. Às vezes é preferível não comê-lo. Sabe aquela menina do colegial, a mais gostosona da turma, que nunca lhe deu bola e deu para todo mundo – mas também quem mandou você ser CDF(*) – a mulherada não gosta de cérebro nesta idade (creio que em idade alguma!), elas querem ação, e CDF pensa muito e não faz nada. Pois é, um dia você irá encontrá-la novamente. Isso é uma lei inexorável da natureza: vinganças exigem reencontros. No supermercado, por exemplo, a antiga menininha gostosa passa perto de você. É lógico que você não a reconhece, agora ela é uma senhora, loira e de rosa-choque. Na cara sinais de pelo menos duas plásticas e uma massa corrida para cobrir o que o bisturi não deu conta. Tirando a barriguinha, que espera urgentemente a intervenção de um outro bisturi para uma lipo, você julga que ela ainda dá uma meia-sola, pelo menos uma trepada sem compromisso, numa segunda-feira de chuva.
Ela vai diretamente para o ataque:
“Oi, você por aqui?”, diz, fingindo surpresa, pois seguiu você o tempo todo no mercado.
“Oi, é...”, você tenta responder, visivelmente embaraçado, concentrando-se para não derrubar a garrafa de vodka da prateleira.
“A Sulyan, lembra?”
“Ah, sim! Terceiro ano, na Escola Técnica, certo!”
Papo vai e papo vem... Na fila do caixa ela emenda:
“Comprei um vinho francês, quer prová-lo em casa?”
Você não sabe como reagir ao choque do atropelamento súbito. Felizmente o celular dela toca e Solyan atende:
“Alô...Sim, vovó leva você no parque amanhã, queridinho!”
Você ainda está tonto, ela desliga o celular e dá o ultimato, crente que ainda está com a bola toda:
“Vamos, estou tão sozinha...!”
Você não resiste. Na realidade você é uma grande alma e detesta ver a solidão nos olhos das pessoas, mesmo que estes olhos se escondam por debaixo de enormes cílios postiços.
Já no apartamento dela, com o vinho aberto, naquele roça-roça, naquele vai-e-vem, você certifica-se de como o tempo é sacanamente cruel com as mulheres. O peito direito dela ainda está firme, mas o esquerdo! E a bunda então, de longe parecia-se com duas bolas de boliche. Foi ela tirar a calcinha para você lembrar-se imediatamente do solo lunar. Parece que o último que esteve ali era amigo de Armstrong, na primeira missão tripulada à lua, na Apolo 11. Ela fica excitada e diz o terrível “venha”. Você, apavorado, se afasta, pega o paletó, corre para porta, se atrapalha com as chaves e antes de sair correndo grita:
“Niii!”

(*) - Cu de Ferro - Expressão usada em certas regiões do Brasil para designar um cara muito ligado nos estudos e geralmente estúpido, um nerd.

J. Fernando Nandé

Um adeus para a Curitiba Polaca


José Fernando Nandé


Curitiba deixou de ser polaca. — Quando? — Há pelo menos três décadas. Quando se despejou no Norte do Paraná a geada negra que pôs fim aos verdes pés de café que brotavam da terra roxa. O ano era o de 1975, coincidentemente o ano da última neve na capital.
Depois da tragédia que dividiu a história do Paraná em antes e depois da geada, a população das novíssimas cidades do norte paranaense viu-se obrigada a procurar outros cenários para a realização de suas esperanças, pois o homem não se faz vivo sem esperanças. Com exceção de três grandes centros urbanos, Maringá, Londrina, Curitiba — e mais tarde Foz do Iguaçu, com a construção da usina de Itaipu — as cidades paranaenses começaram a minguar, quando não a desaparecer por completo, principalmente as dependentes da monocultura cafeeira.
À medida que a região setentrional se esvaziava, com rotas migratórias definidas para regiões do Mato Grosso e outros estados mais ao norte do país, uma grande leva de ex-agricultores saiu de suas cidades para engrossar as franjas urbanas, notadamente a de Curitiba, capital do estado com vocação acadêmica, administrativa e habitada por mais de século por povos oriundos da Europa.
Assim, em bairros predominantemente polacos, habitados por italianos e poloneses — São Brás, Campo Comprido, Órleans e até mesmo Santa Felicidade — que se colocavam no caminho da planejada Cidade Industrial de Curitiba, cresceram os conjuntos habitacionais e as sub-habitações, conhecidas como favelas. Com a industrialização resolveu-se em parte o problema do emprego. Curitiba não mais era somente dos estudantes e dos funcionários públicos e os antigos bairros bucólicos ganharam massas de operários e trabalhadores com um sotaque bem brasileiro que se funde aos antigos dialetos. O curitibano fala hoje uma nova língua que ainda está em processo de formação, com uma gramática própria, que incorpora expressões polacas, gaúchas, mineiras, catarinas e paulistas.
A Curitiba do “leitê quentê” é como um velho cartão postal amarelado da Praça Tiradentes ou do Passeio Público. Em nossos dias, a polaca da pele alvíssima e olhos azuis só tem existência garantida nas páginas dos contos do Dalton Trevisan. Ela, se ainda existir, não vai à panificadora comprar “salame, vina, pão bengala e cuca”. A poloca, esta nova polaca, vai para a padaria cantando um pagode e compra mortadela, salsicha, pão e bolo. Broa com banha nem pensar. Os tempos são outros, pão com margarina será a pedida.

Quem escreve

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Prof. José Fernando da Silva (Nandè) - Cientista de Dados (USP), especialista em Economia do Trabalho (UFPR), graduado em Comunicação Social e Matemática.