Cachorra!





As folhas abandonadas na calçada mostravam a nova estação, tão seca e desprovida de atrativos quanto um pão amanhecido e esquecido no fundo de um armário. Os amigos foram chegando aos poucos no bar. Nunca marcavam encontros. Desde sempre os encontros já estavam marcados: no final da tarde, até que resolvessem ir embora. Naquele dia, dia qualquer, dia de folhas mortas, o primeiro que apareceu foi Kaléu, bêbado inveterado, artista plástico quando sóbrio, metido a valente e por isso contado na amizade de poucas pessoas. Chegou, sentou-se à mesa de sempre, pediu um conhaque e ficou olhando para uma morena bonita e um tanto passada. Ela não parava de retocar o batom escandalosamente vermelho e que fugia pelo menos meio centímetro além dos lábios. Explicável, a mulherona os tinha finos. Coisa esquisita: um bundão, peitões, cabelos longos, olhos grandes e duas linhazinhas paralelas fazendo as vezes de beiços. Ela devia beijar mal, porém Kaléu julgava-se no tempo do pós-beijos, do pós-carinhos — na realidade, ele sentia-se na idade do canalha assumido: do cara que deseja o prazer máximo e sempre com o mínimo esforço.
Sem outra distração, Kaléu aceitou o jogo de troca de olhares com a morena. Entretanto, nada, ou quase nada, trazia para aquela cena entusiasmo ou esperanças. No seu pensamento raso, sem dar a mínima por ser chamado de machista, à medida que o homem ganha experiência, a coisa funciona como em pescaria num córrego que está a secar: peixes pequenos e escassos. Carece, portanto, não perder muito tempo: a vítima não beliscou a isca, o pescador inteligente muda a vara de lugar.
Pedrinho Mc Laren chegou em seguida. Publicitário um pouco além do medíocre, vivia chapado e contrariando qualquer lógica, no nome ganhou o complemento de “Mc Laren” por pura sacanagem. Falava devagar, andava devagar, demorava horas para tomar sua cerveja sempre acompanhada de alguma bebida destilada e amarga.
“Tem visto o Cláudio?”, perguntou Mc Laren assim que puxou uma cadeira até a mesa de Kaléu.
“Semana passada ele esteve aqui”, recordou Kaléu, já esquecido dos olhares da morena sem lábios.
“Ah é, que cabeça a minha! Como não lembrar do escândalo que ele fez ao não querer pagar a conta.”
“E por causa disso a garçonete está uma arara conosco. Faz tempo que cheguei e ela ainda não trouxe meu conhaque.”
Pedrinho Mc Laren ficou um tempão com o olhar perdido, viajando muito além da mesa da morena e seu batom que, certamente, nem notou. Depois de algum tempo retomou a sintonia com o mundo terreno:
“Vamos dar uma gorjeta gorda para ela e tudo fica bem. O Cláudio fez aquela cena toda porque havia consolidado o divórcio. Não é fácil, casado há de trinta anos, com filhos, passaria a primeira noite sozinho em casa.”
“É, a primeira noite sozinho é barra”, observou Kaléu.
“Você tem experiência. Foram quantas? Cinco noites inaugurais de solidão?”, provocou Mc Laren.
“Eu me separei só quatro vezes!”
“Desculpe-me, cinco é um exagero de minha parte. Um sujeito que se casa mais de uma vez prova ser estúpido pelo menos duas vezes.”
“Está me chamando de estúpido!?”
“É lógico que não, calma, não se exalte!”
“Mais do que estúpido, então!”, disse Kaléu, tentando agarrar o colarinho do amigo.
“Não, nada disso. Não estou falando de artistas, falo de outro tipo de homem.”
“Está certo, quero crer que você não está me gozando!”
“De jeito maneira, Kaléu. Quem casa mais de uma vez é estúpido porque realmente acredita nesta instituição falida chamada casamento, coisa da Idade Média. Não é o seu caso, eu sei, você tem um gênio difícil; você ainda procura a pessoa certa, sabendo que nunca vai encontrá-la. Casamento para você é uma tentativa de se tornar como todo mundo, é o seu desejo de uma vida certinha. Infelizmente inatingível para artistas. Você, no fundo não acredita no casamento, por isso nunca teve filhos. Mas o que eu queria dizer mesmo, é que tem certos sujeitos que se fazem os crentes dos crentes. São duas ou mais vezes estúpidos, porque vão ter ex-mulheres e agregados, do tipo cachorro, filhos, papagaio e sogra, a encher-lhes o saco. Isso sem contar as pensões. As ameaças de prisão... Um inferno na terra.”
“Ei, olha lá, não é o Cláudio?”, perguntou Mc Laren, apontando para um sujeito que se aproximava dançando.
“Aí, rapaziada, estou curtindo a liberdade!”, disse Cláudio chegando-se à mesa dos amigos.
“Ainda bem que você está legal! Estávamos preocupados. Você sumiu”, observou Mc Laren.
“Sumi nada. Estava aplicando toda minha experiência para ganhar um anjo!”
“Não me diga que você pensa em passar desta para melhor. Anjo é coisa lá do outro lado, do mundo do invisível!”, disse aos risos Kaléu.
“Que nada, estou decidido. Só vou namorar ninfeta de hoje para diante."
"Capim novo para cavalo velho, não tem nada melhor! Depois de velho virou safado!”, alfinetou Mc Laren.
“Não me ofenda. Tenho minhas economias, meus filhos estão encaminhados. Não vou gastar tempo e dinheiro com carne de segunda. Ah, isso não!”
“Não deixa de ser uma boa teoria... A teoria do açougue, bom nome!”, emendou Kaléu. “Mas vamos examinar o assunto com rigor científico.”
“Rigor científico? Que merda é essa, está querendo me tirar do sério?", vociferou Cláudio.
“Antes de teorizar o assunto, quero um compromisso de nós três. Chova ou faça sol, nos encontraremos neste mesmo local daqui a três anos.”, sugeriu Kaléu.
“Fechado!”, disse Mc Laren.
“Fechado!”, emendou Cláudio.
“Com quantos anos você está agora?”, perguntou Kaléu a Cláudio.
“Estou com cinqüenta e oito e em forma!”
“Com quantos anos está o anjinho que você anda azarando?”
“Ela tem vinte e um, uma belezinha!”
“Daqui a três anos você vai estar com sessenta e um e ela com vinte e quatro, certo?”
“Certo, e daí?”
“E daí que se você ficar com ela todo esse tempo, das duas uma: ou ela lhe mata de cansaço ou você será apenas mais um corno, velho e assanhado.”
“Porra, cara! Vocês vão para a puta que os pariu!! Volto daqui a três anos e provo para vocês que isso tudo não passa de inveja. E agora dá licença, que esta conversa já deu no saco. Tem gente que não suporta a felicidade alheia mesmo. Vão à merda!!!”
“É isso, vamos todos à merda!”, disse Mc Laren.
“Daqui a três anos, todos aqui!, lembrou Kaléu, antes que os amigos tomassem rumo chutando as pedras da calçada.
II
Três anos depois (menos um dia):
Nem parecia outono. Frio mesmo. Cláudio estava sentado no quarto numa poltrona em frente à TV e com suas pernas enroladas num cobertor. Sua mulher estava no banheiro.
“Benzinho, traga-me o meu chá!”, pediu Cláudio, brigando com o controle-remoto da TV.
“Já vai, só vou terminar de ajeitar o cabelo”, gritou a mulher.
Cláudio desligou a TV e apanhou o jornal. Suas mãos tremiam. Colocou os óculos. Jogou o jornal de lado e voltou a apanhar o controle-remoto.
“Está aqui seu chazinho, sem açúcar, como você gosta!”, disse a mulher, que vestia um sumário vestido preto e exagerava na maquiagem.
“Amanhã, querida, eu tenho um encontro com uns amigos no bar, gostaria que você fosse comigo.”
“Não posso querido, eu marquei com mamãe. Vamos visitar meus avós na praia.”
“Mas não dá para adiar?”, sugeriu Cláudio.
“Não, não dá. Vovó está doente e amanhã é o aniversário dela.”
“Mas este encontro é tão importante para mim...”
“Sinto muito, fica para outra vez. Mamãe já deve estar chegando. Ela ficou de me apanhar.”
“Mas o aniversário de sua avó não é amanhã?”
“É amanhã, mas a gente tem que sair hoje, fica longe, no Litoral de Santa Catarina, em Celso Ramos, Praia dos Ganchos... Lembra? Já fomos lá”.
“Sim, mas é perigoso viajar de noite”, observou Cláudio, sabendo-se impotente em todos os sentidos para conter os desejos da sua novíssima esposa.
Ela tornou ao banheiro enquanto cantarolava um sambinha numa alegria sincera. Cláudio continuou sua luta contra o controle-remoto:
“Que merda de TV, não sei a razão de pagarmos TV a cabo, os filmes se repetem, acho que já assisti todos!”, disse Cláudio, esperando resposta que não veio.
Depois de alguns minutos a jovem esposa retorna ao quarto, exalando o cheiro de perfume muito forte e doce. Deslumbrante, com sua juventude traduzida em carnes querendo saltar fora do vestido.
“Você vai passar frio”, disse o marido.
“Estou com uma meia-calça grossa”, respondeu a esposa, apanhando seu casaco e se inclinando para Cláudio na intenção de dar-lhe um beijo de despedida, mas que na realidade objetivava a carteira no bolso do marido.
“Vou precisar de dinheiro para o presente de minha noninha!”
“Mas, mas...”
“Uma beijoca, não vá dormir tarde, tome seus remédios e não esqueça de dar água para o periquito. Comporte-se queridinho! Darei lembranças tuas para todos!", disse a ninfeta, guardando umas notas na bolsa, antes de abrir a porta e desaparecer deixando atrás de si seu doce perfume.
Ao ver a porta fechada, Cláudio se segura na bengala e arremessa o controle-remoto contra a parede:
Caachooorraaaa!!!
III
Exatos três anos depois:
O outono realmente estava atrasado. Nenhuma árvore parecia estavar descabelada. Entardecia. O verde, embora mais escuro, se fazia ainda por toda parte. Kaléu foi o primeiro a chegar no bar. Pediu o de sempre, o velho conhaque. Era sábado, como qualquer outro sábado, pois para Kaléu, de há muito o dia, qualquer dia, passou a ser apenas isso, a parte das 24 horas em que se tem a luz do sol. Depois de uma hora Pedrinho Mc Laren apareceu acompanhado de uma mulher realmente bonita.
“Oi, Kaléu, esta aqui é a Miriam!”
“Encantado!”, respondeu Kaléu, segurando a mão branquíssima e suada da moça, sem esconder a surpresa com o bom gosto de seu amigo.
Mc Laren podia ser devagar em tudo, menos com as mulheres. E aquela realmente tinha os atributos que um homem pode querer. Linda, simpática, madura, de pele macia e cheirosa. Mas Kaléu era um cara de respeitar amizades. Logo, desviou o olhar da moça e passou a conversar com Mc Laren:
“Será que nosso amigo aparece?”
“Acho que sim. Embora não dê as caras por aqui há três anos... Ele mandou recado lá para o escritório dizendo que viria”, informou Mc Laren.
“Moça”, disse Kaléu, chamando a garçonete, “por favor uma cerveja e mais dois copos”.
“Uma vodka também”, emendou Mc Laren.
“Meu amor, vamos demorar muito? Temos pouco tempo, tenho que voltar para casa”, disse Miriam a Mc Laren, cobrando-lhe beijos.
“Não, espere um pouco. Só vamos resolver este assunto. É uma espécie de aposta. Só estamos esperando um amigo.”
“Olha, ele está chegando!”, disse Kaléu.
Cláudio aproximou-se lentamente da mesa apoiado em sua bengala. Estava branco. Muito branco. Parou do lado de seus amigos, recusou a cadeira que lhe ofereceram. Ergueu a bengala e urrou:
Caachoooraaaaa!!!
Depois, a bengala caiu de sua mão, lenta, lenta, fazendo um rodopio antes do baque no solo, como se lembrasse a todos que ali estava apenas um pedaço de madeira seca.
Cláudio segurava o peito como se sentisse uma punhalada. Tentava respirar. Bambeou as pernas, dobrou os joelhos e juntou o seu velho rosto ao chão.
O bar silenciou e antes que o mundo voltasse a sua rotação normal, foi possível ver a primeira folha seca do outono roçar o pavor nos olhos arregalados do cadáver.

Quem escreve

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Prof. José Fernando da Silva (Nandè) - Cientista de Dados (USP), especialista em Economia do Trabalho (UFPR), graduado em Comunicação Social e Matemática.